23 junho 2011

Sub-versão

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Deitados, andaram vagarosamente pelas rachaduras do teto, virando a cada esquina, criando rotas de fuga, desenhando possibilidades, até resolverem rolar, tropeçar um no outro, sentir o toque da pele, fricção. Logo suas roupas, uma a uma, foram arremessadas ao alto e pareciam explodir como fogos de artifício: finalmente nus. E como o mundo girava naquela cama redonda!

Cama redonda relógio e nós ponteiros. Ponteiros girando, apontando os movimentos. Olhar não mais no teto, mas agora vejo seus olhos, sua cintura, sua boca, seus seios, seus braços, suas mãos, seu sexo, e não só vejo, sinto, apalpo, cheiro, invado e nós girando, relógio desgovernado, e aqui, em frente a esse mundo-cama, um grande espelho, testemunha viva, cúmplice da nossa ausência de tempo.

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Praticam o óbvio: esquecem-se dos sentidos entregando-se a eles, sentindo cada gota de chuva, cada canto de pássaro, cada corte de vento e o frio e o gelo na espinha: o barulho de uma tourada. Como correm esses touros.

Gritos audíveis ou abafados atravessando paredes de finura-papel. Depois, a voz do vento contanto segredinhos, entrando e saindo, imobilizando-os aos poucos, relógio quase sem pilha, porque logo ficariam parados, fixos em algo chamado contemplação, cansaço ou madrugada.

E em minutos o sol faria aparição translucida, através da cortina salmão, para denunciar o fim da noite, e anunciar as responsabilidades do dia seguinte. Tão duro, quase uma tortura, acordar com raios de sol fazendo vagarosas cócegas no rosto, pinicando o corpo, sol. “Tentemos fugir dele!” timbre de voz de quem teria uma idéia e sim, a idéia nasceu mais rápida que o sol: olhou para ele e disse “me ajude, vou atrasar o relógio”.

21 junho 2011

Labirinto

Chegaram com o leve embaraço de quem está perdido ou de quem quer se encontrar. Seria ali. Vamos? Sim. Corredor estreito, alguns degraus, uma porta trancada, logo aberta, breve conversa, documentos entregues em troca de uma chave, outra porta aberta e então o labirinto-caracol. A cada passo que davam, adentravam em um mundo de luz cada vez mais turva e a timidez inicial ia se diluindo pela surpresa, pela descoberta das paredes descascando e das molduras quase que pedindo um retrato. Perceberam que as paredes se afunilavam e sem se importarem, iam girando. Voltas e voltas. Caracol. Acharam o centro: quarto número catorze.

19 junho 2011

Espelho

Ao cruzarem aquela porta sabiam muito bem que entrariam em lugar exótico, talvez a Grécia, e que poderiam encontrar um bouzouki abandonado, um livro deixado sem ponto final, qualquer coisa. Primeiro encontraram a escuridão. Viram estrelas. Constelação-dela-Touro. Mãos no interruptor. Fez-se luz: gostoso-estranhamento. Agora poderiam escrever, compor os atos, movimentando-se em ritmo próprio a partir do som do bouzouki. Saltaram, então, para uma tão redonda cama - mais parecida com um relógio - que seus corpos só poderiam ser ponteiros - ele o de minutos, ela o de horas mais baixa que era- apontando esses vertiginosos movimentos corpóreos e temporais: para sempre guardados naquele quadro luminoso, grande espelho, testemunha viva, cúmplice dos distintos movimentos dos ponteiros, de um relógio com vida própria.

Naquele dia, um temporal alagou a cidade.

17 junho 2011

Ana, uma Rosa

Lembrou-se subitamente que sempre quis ser pintor. Gostava de transformações, de composições, de pular amarelinha para sentir o céu e o inferno. Lembrou-se também que sempre quis criar uma flor, um fantasma em forma de flor e por que não agora, enquanto andavam, ombro a ombro, quase calados? Sim, agora. Primeiro pôs o amarelo e foi pintando o entorno - as poucas palavras, as pessoas, si próprios, tudo - até ter que, inevitavelmente, despejar o verde, muito verde, entrar no verde, sabendo que logo encontraria a mesma despedida fantasmagórica de cinco anos atrás: já estavam no azul, tudo azul, linha azul e Ana, uma Rosa.

Ao partir, percebeu que se esqueceu de entregar-lhe a flor.

03 junho 2011

Sossego

Juntou dinheiro por alguns anos. O que pôde comprar foi um apartamento no primeiro andar de um edifício pequenino; mas sobraram uns trocados. Passou bons dias, regados a gim, até notar que o vizinho do andar de cima caminhava de maneira ritmada: era ritmo de botas no assoalho, de interrupção de sonhos, de batuque que lembrava o galopar de cavalos. Odiava cavalos. Puto da vida foi comprar um protetor auricular. Não achou. Pensou em presentear o vizinho com um tapete. Não tinha dinheiro suficiente. Resolveu comprar um serrote. Esperou que o vizinho dormisse e galopou até o andar de cima.

31 maio 2011

Achei que...

Não agüentava mais aquela sujeira toda. Achou que era dia de limpeza, colocou um disco na vitrola e resolveu limpar cada canto da casa. Sabia que quando o disco terminasse, também terminaria seu espírito de faxina. Na sala, que imundice, achou um anel entre os assentos do sofá. Era bonito, redondo, brilhava. Primeiro colocou no mindinho, sobrava anel. Depois no indicador e que aperto, que sufoco, que desespero, que terror de perder o dedo. Ao menos não seria na sala entre os assentos do sofá.

25 maio 2011

Oito da manhã

Havia acabado de acordar e deus, que coceira insuportável! Coçou o braço, a barriga, se contorceu para coçar as costas, quase arrancou seus cabelos de tanto esfregar as unhas compridas no couro cabeludo. Até que olhou para o lado e não parava de coçar os olhos: miragem? Tateou o chão ao lado da cama. Encontrou os óculos. Nada da coceira parar. Olhou novamente e nua ao seu lado, a mulher do melhor amigo.

Descobriu: foi coçar a consciência.

23 fevereiro 2011

Havia algo como o piscar; não resisti.

Primeiros Encontros

Todo instante que passávamos juntos
Era uma celebração, como a Epifania,
No mundo inteiro, nós dois sozinhos.
Eras mais audaciosa, mais leve que a asa de um
    pássaro,
Estonteante como uma vertigem, corrias escada
    abaixo
Dois degraus por vez, e me conduzias
Por entre lilases úmidos, até teu domínio,
No outro lado, para além do espelho.

Quando chegava a noite eu conseguia a graça,
Os portões do altar se escancaravam,
E nossa nudez brilhava na escuridão
Que caía vagarosa. E ao despertar
Eu dizia, “Abençoada sejas!”
E sabia que minha benção era impertinente:
Dormias, os lilases estendiam-se da mesa
Para tocar tuas pálpebras com um universo de azul,
E tu recebias o toque sobre as pálpebras,
E elas permaneciam imóveis, e tua mão ainda
    estava quente.

Havia rios vibrantes dentro do cristal,
Montanhas assomavam por entre a neblina, mares
    espumavam,
E tu seguravas uma esfera de cristal nas mãos,
Sentada num trono ainda adormecida,
E – Deus do céu! – tu me pertencias.
Acordavas e transfiguravas
As palavras que as pessoas pronunciam todos
    os dias
E a fala enchia-se até transbordar
De poder ressonante, e a palavra “tu”
Descobria seu novo significado: “rei”.
Objetos comuns transfiguravam-se imediatamente,
Tudo – o jarro, a bacia – quando,
Entre nós como uma sentinela,
Era colocada a água, laminar e firme.

Éramos conduzidos, sem saber para onde;
Como miragens, diante de nós recuavam
Cidades construídas por milagre,
Havia hortelã silvestre sob nossos pés,
Pássaros faziam a mesma rota que nós,
E no rio peixes nadavam correnteza acima,
E o céu se desenrolava diante de nossos olhos.

Enquanto isso o destino seguia nossos passos
Como um louco de navalha na mão.

Arseni Tarkoviski

18 fevereiro 2011

Ou Ritmo Ou Joana d'Arc

O que sinto não sei descrever. Essa estranha sensação remete a alguma coisa como um dedo em contraponto com o nariz, é um apertar tão fundo que temo que minha pele rasgue. Não esperava por essa ponta me contra apontando, por essa postura de recusa que também recusa deslocar o dedo daqui e a omoplata dalí para algum lugar mais quentinho. No fogo o corpo é tão frágil. Quero afirmar, mas tudo que me cabe é perguntar por que ainda insistem em balançar suas cabeças em frágil negação? Também nego. Não, Não. Não nego, impostores. Vocês negam e sabem que jamais repetirei esse torcicolo, zelo tanto por minhas dores. E os culpo tanto, já que meu pescoço mordido sequer teve o direito de se sentir doído. Queria escrever o que sinto e antecipar o que se tornará medo, mas meu pescoço foi mordido pelas lâminas da guilhotina e minha cabeça rolou. É tudo tão vermelho.


Meus olhos ainda reproduzem o fogo da lamparina, em meus olhos ardem chamas. Das trevas à luz. Do que eu fui ao que jamais serei. Devo dizer que soa como um delicado arranhão nessa ausência de tempo. Não esperava por essa posição já que nunca havia me ocorrido nada. Nada é nada, seja êxito ou hesitação por ser pavio curto. É natural. Não tenho sequer coragem de piscar. O medo de queimar meus cílios e pálpebras cria uma tensão desnecessária, e se forem espertinhos, notarão que tudo é tão próximo do prazer. É a natureza. Outrora esse incêndio seria tão oportuno para meu calafrio, mas agora, para quê tantas faíscas? Iria perguntar, mas tudo que me permito é afirmar que meu papel como narradora é fazer a ciranda girar. Batam palmas, escravos. Ou assoviem. Desculpem-me, mas a dança pede isso. Movo-me por todos os cantos, estou à procura da minha cabeça.


17 fevereiro 2011

Três Tempos

ainda parado:
observava as rachaduras do muro de uma só cor quando começou a chover. eram pingos de água do céu, era sua graça
os pingos manchavam o muro para uma segunda cor criando uma atmosfera que me fazia rachar por dentro achar que meus olhos estivessem cansados
ambientei-me aos poucos nessa segunda cor que estava tomando forma transbordando linhas batendo pingos na parede em mim
fui seguindo com os olhos mãos corpo e espírito os traços que esses pingos, essa nova cor, formavam
não sabia o que era mas sensações se refletiram em mim como se eu estivesse dentro de um marasmo espelhado pois pude perceber que esses traços espalhados eram agora compostos por frases soltas de um parágrafo seu. frases suas que reverberavam em mim

já andando:
me afastei e pude ver embaçada pelos pingos deformada pelas traças a sua face oriunda da chuva; você bateu-me como uma revelação

não me conformando: 
selei sua boca tracejada com um beijo celo-fane forçando-te a sair do muro pingado e vir a mim azul e borrada pela chuva.